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Pelas Lentes da Produção: Um Relato do 45º Festival Internacional de Música de Londrina

  • Foto do escritor: João Vitor Viana Ribeiro
    João Vitor Viana Ribeiro
  • há 1 dia
  • 7 min de leitura

De Egberto Gismonti às orquestras sociais, passando por encontros nos bastidores, ruas, salas e coxias: um relato/memória sobre as emoções, os aprendizados de uma edição inesquecível do Festival de Música de Londrina.


João Ribeiro e Marcos Martins, nos bastidores do FIML | Foto: Fábio Alcover
João Ribeiro e Marcos Martins, nos bastidores do FIML | Foto: Fábio Alcover

O FIML é — da perspectiva que me atravessa, do olhar calibrado pelas lentes da produção artística — um organismo vivo, intenso, às vezes imprevisível, mas profundamente transformador. Ao final de cada edição, surge a necessidade de parar, respirar e tentar organizar em palavras tudo o que vivemos.


Ao longo de quinze dias, no último mês de julho, fomos atravessados por sons, encontros e experiências que não cabem nas planilhas de cronograma, tampouco cabem neste texto. Ainda assim, há potência nesse esforço de relatar: reconhecer nossas conquistas, refletir sobre o que pode ser aprimorado e registrar a beleza do que construímos juntos.


Lívia Nestrovski, no palco do Teatro Ouro Verde | Foto: Fábio Alcover
Lívia Nestrovski, no palco do Teatro Ouro Verde | Foto: Fábio Alcover

O som chega primeiro nos ouvidos que prestam atenção

Começamos em maio, numa chamada de vídeo entre o diretor artístico do Festival e eu, coordenador de produção artística. Naquele momento, abríamos os caminhos para o que seria a programação do 45º FIML. Com o passar das semanas, os nomes foram chegando, as confirmações se consolidando, e aos poucos a cidade começava a ouvir o festival ressoar em seus corredores, ruas e conversas.


O que me move como produtor é a escuta: cada atração tem um ritmo, uma intenção, uma delicadeza própria, e estar atento a isso é parte do ofício. E do prazer. Desde as primeiras conversas, abri espaço para que os artistas se sentissem acolhidos. Foi nesse compasso que a programação foi tomando corpo, e cuidamos com atenção dos riders, dos palcos, das escalas, da harmonia entre técnica e criação.


Confiança, Coletivo e Pluralidade

No dia 11 de julho, sexta-feira, iniciou-se oficialmente a 45ª edição. A equipe de monitores, formada por nomes já queridos e outros recém-chegados, se reuniu cedo para o primeiro encontro. Foi um momento de renovar a confiança, de olho no olho. Sabíamos que seria uma maratona, mas também sabíamos que estávamos juntos. A abertura foi compartilhada em parceria com a Osuel, apresentando a série Catuaí. Apesar dos desafios, conseguimos garantir a entrega da noite com firmeza e cuidado. 


Mundana Refugi | Foto: Fábio Alcover
Mundana Refugi | Foto: Fábio Alcover

No sábado, dia 12, a verdadeira celebração se fez com a apresentação da Orquestra Mundana Refugi. Doze músicos, vindos do Líbano, Congo, Venezuela, e de outros lugares do mundo, costuraram com suas músicas a beleza da pluralidade que o festival busca honrar.


No domingo, dia 13, levamos o festival para a rua. No Lago Igapó 2, ao fim de tarde, a Banda Gata de Botas se apresentou no com um trio de metais, em homenagem ao Dia do Rock! 


Na mesma noite, subiu ao palco do Teatro Ouro Verde um dos momentos mais memoráveis desta edição: Egberto Gismonti. Um artista que entregou um show profundo e se mostrou inteiro para o encontro com o festival. E com todos nós.


Desde os primeiros contatos, Egberto nos conduziu com precisão: não queria caixas de som voltadas ao público. Ele buscava ressonância, vibração real da sala.

“Se fizerem como estou pedindo, serei o cara mais legal do mundo”, disse com humor. 

Raka Balekian e Egberto Gismonti | Foto: Fábio Alcover
Raka Balekian e Egberto Gismonti | Foto: Fábio Alcover

Montamos tudo com esmero: rebatedores de madeira inclinados com caixas de som voltadas para eles, usando praticáveis de 2x1m. Um microfone simples, o velho conhecido SM58. Do Egberto, a constante: nada além do necessário para captar o som do meu piano e do meu violão. 




Sara Dellalo, Angelo Galbiati, Egberto Gismonti, Daniel Murray, João Ribeiro e Samuel Lorenzetti | Foto: Fábio Alcover
Sara Dellalo, Angelo Galbiati, Egberto Gismonti, Daniel Murray, João Ribeiro e Samuel Lorenzetti | Foto: Fábio Alcover

Conversamos sobre a “demanda simples que assusta” — como buscar uma entrega sonora orgânica, sem excessos técnicos entre o som e o público. E foi bonito ver a equipe de sonorização abraçando essa proposta com tanta sensibilidade e precisão. Essa escolha exige coragem. E funcionou. O som foi elogiado por quem tocou e por quem ouviu. Era arte conduzida por escuta.


Algo me tocou e não foi só a qualidade do som. Foi a presença inteira de Egberto com todos ao redor. Ele conversou com músicos, técnicos, público. Ficou até tarde no restaurante, trocando ideias, contando histórias. Comigo, nos encontramos ainda no teatro, no camarim, e depois saímos juntos, andando até o calçadão. Um vento frio corria ali, na frente do Ouro Verde, e a cidade estava em silêncio.


Egberto Gismonti ao piano, no Teatro Ouro Verde  | Foto: Fábio Alcover
Egberto Gismonti ao piano, no Teatro Ouro Verde | Foto: Fábio Alcover

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No camarim, antes da caminhada, levei a ele um vinil de “Egberto Gismonti - 1984”, um disco que marcou minha infância. Expliquei que ouvia aquele disco com meu pai quando pequeno, e que agora ele está na minha coleção. Egberto, com delicadeza e humor, escreveu na capa: 


“Ronaldo, obrigado pela força de manutenção neste disco que me é tão significativo.”

Quando contei e mostrei a dedicatória ao meu pai, ele se emocionou. Foi um presente raro, daqueles que atravessam gerações.


Na conversa, Egberto contou também sobre a censura sofrida por esse mesmo disco. Ele queria chamá-lo Bandeira do Brasil, mas o nome foi vetado. Como resposta, espalhou o símbolo da bandeira brasileira por toda a arte do álbum: em colagens, balões de fala, pequenos detalhes. "Já que não me deixaram usar o nome, coloquei o símbolo em tudo que consegui", disse. Um gesto de resistência criativa que me marcou.


Seguimos a conversa até o calçadão. E foi ali, com o vento nos atravessando, que ele me contou uma história que nunca vou esquecer.


Egberto Gismonti ao violão, no Teatro Ouro Verde  | Foto: Fábio Alcover
Egberto Gismonti ao violão, no Teatro Ouro Verde | Foto: Fábio Alcover

Disse que havia sido entrevistado por uma jornalista que, ao final da conversa, apresentou três músicas e perguntou se ele as conhecia. Ele até identificou fragmentos, e tentou justificar, mas ela insistia: queria apenas um “sim” ou “não”. Depois do jantar, ela desapareceu. Só mais tarde voltou a procurá-lo, enviando gravações completas das obras.


Ao ouvi-las, Egberto se reconheceu nos trechos — e a jornalista lhe disse: “Minha mãe nasceu e cresceu no mesmo lugar que a sua. Eu sei o que essas mães cantavam para ninar os filhos. E você carrega esse canto na sua obra, mesmo sem saber.”


Nós dois marejamos os olhos. Ele disse que se arrepiou. Quase caiu de joelhos quando percebeu. Foi um momento de rara beleza, desses que a música provoca quando alcança camadas que não se explicam.


Entre afetos e acordes 

A semana seguiu cheia de novas descobertas. Erika Ribeiro nos presenteou com uma performance sensível e precisa, ao lado do contrabaixista Rodrigo Fávaro.


Também tivemos o show de Lívia Nestrovski e Fred Ferreira, seguido do espetáculo Cabaré, criado pelos alunos de Lívia com assessoria do professor Paulo Vitor Poloni, em apenas três dias de intensa criação.


A extensão em Arapongas foi também um ponto alto, três dias de apresentações no Cine Teatro Mauá e na Feira da Lua. 


Sidiel Vieira e Sérgio Reze  | Foto: Fábio Alcover
Sidiel Vieira e Sérgio Reze | Foto: Fábio Alcover

Sérgio Reze apresentou o concerto de lançamento do seu novo disco, trabalho iniciado durante o curso que ministrou no festival em plena pandemia. Após anos ao lado de nomes como José Miguel Wisnik, Sérgio compartilhou conosco sua própria leitura da música brasileira. Acolher esse momento foi emocionante, assim como seguir fortalecendo a amizade que se construiu entre nós ao longo das edições. 


Duas sessões lotadas e apresentação na escadaria do Teatro Ouro Verde  | Foto: Fábio Alcover
Duas sessões lotadas e apresentação na escadaria do Teatro Ouro Verde | Foto: Fábio Alcover

Ressonâncias

Montagens simultâneas, ajustes inesperados, programações pedagógicas em vários espaços da cidade.


Nessas horas a equipe se mostra gigante. As duas sessões do Beatles Symphony lotaram o teatro.


E entre elas, ainda, vivemos o momento solar da Orquestra Sanfônica nas escadarias do Ouro Verde. Isso mesmo, foram mais de 10 sanfonas e acordeons fazendo a festa do público que aguardava a próxima sessão.


Bruno Cotrim com Brasil Combo Jazz - Feira Flua Cultura | Foto: Fábio Alcover
Bruno Cotrim com Brasil Combo Jazz - Feira Flua Cultura | Foto: Fábio Alcover

No sábado, realizamos também a Feira Flua Cultura na Praça do Aeroporto, uma parceria linda entre projetos.


Cerca de 2.000 pessoas circularam entre 13h e 19h, com shows, feira criativa e um pôr do sol memorável ao som de Brasil Combo Jazz.

Foi uma tarde viva, afetiva e potente. Para mim, muito simbólica, por unir dois projetos que fazem parte da minha trajetória.


Para encerrar o festival, o concerto das Orquestras Sociais reuniu mais de 100 pessoas no palco do Ouro Verde — uma síntese sonora do que foi construído coletivamente ao longo da semana. Música como celebração e continuidade.


Concerto de Encerramento com a orquestra formada principalmente por projetos sociais de todo Brasil  | Foto: Fábio Alcover
Concerto de Encerramento com a orquestra formada principalmente por projetos sociais de todo Brasil | Foto: Fábio Alcover

Bastidores, encontros e equipe

Mas não só de palcos é feito um festival. Há muito do que acontece nos bastidores que merece ser celebrado: a dedicação da equipe. 


Um exemplo disso foi a chegada de Vanessa Moreno, afônica, poucas horas antes do show Visita Djavan. Montamos uma força-tarefa — médico, fonoaudióloga, logística precisa — e, no fim, ela subiu ao palco e entregou uma apresentação inesquecível, que fez muita gente chorar, inclusive este que escreve aqui.


Vanessa Moreno, no Teatro Ouro Verde  | Foto: Fábio Alcover
Vanessa Moreno, no Teatro Ouro Verde | Foto: Fábio Alcover

Não dá para fechar esse relato sem dedicar um trecho a essa brava gente que faz o festival acontecer nos bastidores, nas trocas silenciosas, nos atendimentos nos corredores, salas, camarins e coxias. A equipe de monitores, técnica e de apoio foi o coração pulsante da edição. Montamos um time que já havia funcionado bem no ano anterior e que, neste ano, somou ainda mais com afeto e cuidado no trato com os alunos, professores e artistas.


Parte da equipe! Guilherme, Gustavo, Miriam, Galvão, Giovanna, Duda e João. | Foto: Fábio Alcover
Parte da equipe! Guilherme, Gustavo, Miriam, Galvão, Giovanna, Duda e João. | Foto: Fábio Alcover

Essa presença sensível foi percebida por todos e elogiada de forma espontânea. É bonito ver como cada pessoa foi entendendo seu papel com mais segurança, mais escuta, mais entrega. Seguimos aprimorando fluxos e processos, é verdade, mas guardamos com carinho a qualidade humana do nosso jeito de fazer. E é isso que, no fim, torna tudo possível.


Encontros no Calçadão em frente ao Teatro  | Foto: Fábio Alcover
Encontros no Calçadão em frente ao Teatro | Foto: Fábio Alcover

Tivemos música nos bastidores, improvisações vocais intermináveis, figurinhas do festival criadas por João Gabriel, o “Camilord in Londrama”, cervejas noturnas e trocas que fizeram tudo valer a pena. “Quem viu viu”.




Entre o som e o silêncio

Há algo que o cronograma não capta: o espaço entre as coisas.


É no intervalo entre um show e outro, entre um desafio e uma conversa, que o festival pulsa. Essa respiração invisível também é parte da música. E é parte de nós.


E que a música continue sendo essa linguagem que nos une, nos move e nos transforma — dentro e fora do palco, no instante entre o antes e o depois.


João Vitor Viana Ribeiro

Coordenador de Produção Artística do 45º Festival Internacional de Música de Londrina e Integrante do coletivo Flua Cultura


*Todas as fotos são do incrível Fábio Alcover



1 comentário


Sergio Reze
há 12 horas

João, que texto lindo transbordando a pessoa sensível que vc é!

Por aqui, entre “ sons e silêncios” ,memórias afetivas e saudades dos maravilhosos encontros e vivências com que o festival nos presenteia

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