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Entre palcos e ciclos

  • Foto do escritor: João Vitor Viana Ribeiro
    João Vitor Viana Ribeiro
  • 28 de jun.
  • 4 min de leitura

Um rito pessoal na despedida de Gilberto Gil e a reverberação das suas canções

Turnê "Tempo Rei", a última de Gilberto Gil | Créditos: Giovanni Bianco/Divulgação
Turnê "Tempo Rei", a última de Gilberto Gil | Créditos: Giovanni Bianco/Divulgação

Planejar um encontro com Gilberto Gil, em sua turnê de despedida, foi como preparar um ritual de passagem. Desde o anúncio da Tempo Rei, parecia que essa seria uma oportunidade rara: não apenas de assistir a um ídolo, mas de testemunhar um ciclo inteiro se completar.

Fotos: Pridia
Fotos: Pridia

O show aconteceu no dia 7 de junho, em Brasília, reunindo mais de cinquenta mil pessoas num sábado de céu limpo e expectativa alta. No palco monumental, ladeado por filhos, netos e músicos que ajudaram a costurar essa história, Gil parecia ao mesmo tempo presente e transcendente, como se fosse parte de um grande movimento em que tudo se reinventa.


Arquivo pessoal
Arquivo pessoal

Na semana anterior, a Chapada dos Veadeiros ofereceu um prelúdio silencioso. Um território onde o tempo corre em outro ritmo e onde a natureza insiste em lembrar que nada permanece igual. Trilhas, cachoeiras, mirantes. E aquela flor discreta do cerrado — a palipalan — imponente e exigente, que surge quando o olhar se afina. Entre pedras e raízes, a luz que atravessa a copa das árvores - komorebi, como se diz no Japão - lembrava que há sempre uma lição a aprender sobre ciclos que se fecham e recomeçam.



Foi com esse olhar que, dias depois, cheguei cedo ao Mané Garrincha.

Fotos: Pridia
Fotos: Pridia

A estrutura do palco era imensa, como se tivesse sido erguida para dar conta de tudo que Gil representa. Quando ele entrou, depois de uma explosão de fogos, senti meu coração bater como se fosse a primeira vez que eu escutava aquelas músicas. Começou com Palco, como quem invoca a deusa Música e oferece o corpo inteiro em troca da canção: “Deixe que eu derrame o bálsamo do canto.”


O repertório parecia costurado para contar sua história em capítulos. Logo no começo, Procissão trouxe aquele sentimento de travessia e devoção. Depois, Back in Bahia apareceu numa versão mais contida, quase contemplativa, como quem revisita a juventude sem pressa. Em Cálice, a presença de Chico Buarque no telão e o coro de “sem anistia” lembraram que a música também pode ser memória e denúncia. Cada música vinha acompanhada por imagens no telão: paisagens, retratos antigos, cenas familiares que acendiam memórias coletivas.


Fotos: Pridia
Fotos: Pridia

Houve um momento pequeno e significativo. Um chiado grave, por alguns segundos, quase quebrou a atmosfera. E ali, no que poderia ser apenas um contratempo técnico, surgiu um gesto wabi-sabi: Gil percebeu, sorriu e, sem afetação, puxou uma vocalização que trouxe todo mundo de volta. Era como se dissesse que tudo — até a falha técnica — faz parte. Uma resposta que não vinha da pressa, mas de um lugar interior onde o improviso já é disciplina.


O set reggae acendeu o público. Gil contou do Festival Mundial de Arte e Cultura Negra na Nigéria e da inspiração para Refavela. Logo depois, Realce explodiu em luzes, pirofagia e um globo espelhado que transformou o estádio numa constelação de pontos brilhantes.


“A Gente Precisa Ver o Luar”, “Punk da Periferia” e “Rock do Segurança”, botando todo mundo pra dançar, para – depois – pegar seu banquinho e violão e emocionar a multidão com canções como “Estrela”, “Drão” e “Esotérico”. Em “Se Eu Quiser Falar com Deus” um momento agora guardado num velho baú de prata dentro de mim: Gil e o violão, um sopro suave, o estádio inteiro em silêncio. Alguns fecharam os olhos, outros se abraçaram.



Arquivo pessoal
Arquivo pessoal

Na catarse final, “Expresso 222”, “Aquele Abraço”, “Emoriô”, “Andar com Fé”, para encerrar com a apoteótica “Toda Menina Baiana”, que coloca o estádio inteiro para pular entoando: “Ah ah ah ah, que Deus Deu, Oh Oh, que Deus Dá!”. Quando "Aquele Abraço" parecia encerrar o show, choveu papel picado sobre cinquenta mil pessoas que sabiam que estavam vivendo algo que não se repetiria. Ainda teve bis de do forró “Esperando na Janela”

Arquivo pessoal

Tudo se organizou como um grande prisma — as telas de LED, o espiral de luz, a projeção de imagens que faziam as canções se multiplicarem em sentidos. Talvez essa seja a marca mais bonita: Gil não parece ter pressa de encerrar nada. Ele apenas devolve ao tempo o que o tempo lhe deu.


Saí do estádio com o coração batendo forte. O corpo ainda processava tudo aquilo: a beleza, a sensação de despedida, a certeza de que, mesmo quando a voz se cala, algo continua ecoando.


Mas essa história não termina ali.


Desde o início desta série de textos, venho conversando com o professor Paulo Vitor Poloni sobre como a obra de Gil também é matéria de aprendizado. Ele e seus alunos se dedicaram a montar um espetáculo que celebra essa herança — que no dia 29 de junho, se apresenta na AML, às 20h, em Londrina.


Perguntei ao Paulo como foi escolher o repertório. “Quando vi que o Gil anunciara a turnê de despedida, senti que era urgente montar esse show”, ele contou. As canções foram escolhidas para atravessar todas as fases: o Gil sambista, o existencialista, o nordestino, o pop. E também para desafiar os alunos em diferentes níveis de dificuldade, já que cada estudante carrega seu próprio tempo de voz.


Ele me disse ainda que muitas músicas, por mais conhecidas que sejam nos refrões, guardam trechos difíceis de decorar — letras longas, jogos de palavras, melodias que sobem e descem numa mesma frase. “Essa foi uma das maiores dificuldades”, comentou. “Além disso, separei canções bem complexas para trabalhar percepção melódica.”


Perguntei o que cantar Gilberto Gil ensina. Paulo respondeu de um jeito simples e bonito: “Cantar Gil é refletir sobre a vida em tudo que isso significa — na existência, na poesia, na alegria.”


Entre o palco imenso de Brasília e o palco íntimo de Londrina, há algo que me comove. Gil se despede, mas deixa um repertório que não é só de músicas: é um repertório de gestos, de pausas, de coragem para se manter presente.


“Como é bom poder tocar um instrumento”, canta Caetano em Tigresa.


Mas e quando o instrumento é o corpo? Quando o aprendizado é sustentar a nota, mesmo tremendo um pouco? Quando o maior ensinamento é estar inteiro — no silêncio e no canto?


Talvez seja isso que continuemos aprendendo com ele.


Por João Vitor Viana Ribeiro, produtor cultural em Londrina e membro do coletivo Flua Cultura.

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