Do Cárcere ao Palco - Como Gilberto Gil transformou a prisão em “Aquele Abraço”
- João Vitor Viana Ribeiro
- 15 de mai.
- 3 min de leitura
Atualizado: 26 de mai.

Em 1969, Gilberto Gil foi preso pelo regime militar. A cela era também um tempo suspenso. Um intervalo forçado entre a liberdade e o exílio. Mas foi ali, na tentativa de silenciamento, que surgiu uma das canções mais radiantes da música brasileira: “Aquele Abraço”.
Enquanto a ditadura queria apagar, Gil respondeu com festa. Uma festa construída não apesar da dor — mas com ela. A música, com todas as suas referências a bairros, figuras populares e cenas cotidianas, nasce do conflito, mas não se rende a ele. Transforma a rigidez do cárcere em fluxo, a repressão em deslocamento afetivo. E nos lembra: resistir também pode ser sorrir.

A escolha por não responder com lamento é um gesto estético — e ético. No texto que abre essa série, volto ao que escrevi em 2017, intitulado A Arte da Imperfeição na Obra de Gilberto Gil, e desenvolvo justamente essa ideia: que há em Gil uma conduta estética que rejeita o acabamento e o controle, e aposta na vitalidade das coisas incompletas. Sua obra nos ensina que criar é, muitas vezes, aceitar a rachadura — e, a partir dela, fazer som.

Nesse sentido, “Aquele Abraço” é um ato wabi-sabi. Não porque fale da impermanência ou do silêncio, mas porque transfigura o erro, o ruído e a imperfeição em linguagem. Assim como a cerâmica quebrada do kintsugi, que ganha valor justamente por evidenciar suas rachaduras, a canção não apaga sua origem: ela a revela. E ao revelar, religa. Une o pessoal ao coletivo, o corpo à cidade, a dor à dança.
Na estética japonesa, isso não é incoerência — é maturidade. O wabi-sabi não celebra a imperfeição como uma moda, mas como parte constitutiva da vida. E Gil, como artista, faz disso um princípio de composição: sua voz nunca é polida demais, seus arranjos sempre têm espaço para o improviso, seus versos parecem deixar sempre uma borda aberta.

Em “Aquele Abraço”, a alegria não vem para disfarçar a dor — mas para levá-la adiante, com outros gestos. Ao invés de cristalizar a ferida, Gil a move. E isso também é política: enfrentar a dureza do tempo com leveza não é negação, é sabedoria. É sabedoria de quem entende que o tempo é também rei, mas que a música o atravessa.
Hoje, mais de 50 anos depois, a canção segue pulsando. Em cada show da turnê Tempo Rei, ao cantar “alô torcida do Flamengo”, “alô moça da favela”, “alô Zona Norte”, Gil estende aquele mesmo abraço — que começou entre grades, mas nunca deixou de circular.

Em Londrina, o professor de canto Paulo Vitor Poloni tem levado as canções de Gil para dentro da sala de aula — e, com elas, a possibilidade de escutar o canto de outro jeito.
O que fazer com uma voz que falha? Com uma frase cantada fora do tempo exato? Com uma respiração que se impõe no meio da melodia?
A estética de Gil responde: não é erro — é rastro. É corpo. É gesto presente.
“Aquele Abraço” não é só uma composição histórica — é também uma lição de canto e de criação. Uma aula viva sobre como transformar silêncio forçado em presença sonora.
Por João Vitor Viana Ribeiro, produtor cultural em Londrina e membro do coletivo Flua Cultura.
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